Pandemia favorece aproximação entre startups e gestores públicos

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Govtechs ganham relevância, mas ainda encontram resistência de investidores e governos

Beatriz Montesanti

Dentro do ecossistema de inovação há um grupo de empresas olhando para um segmento particularmente complexo e burocrático: os governos.
Na nomenclatura usual às startups, elas são chamadas govtechs –iniciativas dedicadas a desenvolver tecnologias que tornem a gestão pública mais eficiente.

Os exemplos são inúmeros e vão desde plataformas para controlar o orçamento a aplicativos educativos, passando por sistemas de atendimento ao cidadão e transparência da gestão.

De acordo com um levantamento do BraziLab, entidade dedicada a conectar as startups ao poder público, há hoje no país ao menos 80 empresas no ramo que negociam de forma consistente com os governos, embora a pandemia tenha fomentado o surgimento de novas.

A maior parte delas, 28%, é dedicada a resolver problemas relacionados à gestão, outras 17% à educação, e 11%, à saúde. Mas o foco de atuação é tão diverso quanto os problemas a serem enfrentados pelos entes públicos: há também empresas na área de segurança, mobilidade, ambiente, saneamento e habitação.

O mesmo relatório aponta que outras 1.500 startups brasileiras têm o potencial de atender a necessidades governamentais, se oferecerem os seus serviços para esses órgãos.

“Há cinco anos, quando começamos, a pauta da inovação em governo era bastante incipiente, não era vista como uma vertical relevante, organizada, estruturada”, afirma Letícia Piccolotto, fundadora e presidente-executiva do BrazilLab.

A organização oferece programas em que apresenta desafios do setor público e seleciona startups com o potencial de resolvê-los. A edição do ano passado, por exemplo, foi dedicada a atender as demandas de gestão relacionadas à pandemia do novo coronavírus.

“O que vemos hoje é um ecossistema se reconhecendo e se estruturando como relevante. A pandemia também acelerou muito a pauta de transformação digital no setor público. Se antes era uma tendência, a questão da inovação e do uso de tecnologias por parte dos governos virou essencial”, completa.

Os programas de aceleração também se preocupam em capacitar os empreendedores a navegar por um setor que diverge da lógica empresarial.
“Buscamos fazer com que eles entendam como funciona o universo de compras públicas, o que é licitação, dispensa, cartaconvite, quais são os modelos possíveis de se relacionar. O objetivo é desmistificar esses conceitos para estabelecer uma relação entre ente público e privado e deixar entrar outros players na equação”, afirma Piccolotto.

“Governos têm uma grande necessidade de transformação digital, mas, por natureza, acabam evoluindo de forma mais lenta. A pandemia beneficiou quem já estava olhando para o futuro”, diz Ricardo Ramos, cofundador da Gove, plataforma que integra dados públicos, ajudando gestores a economizar recursos.

A startup coleta dados dos diferentes entes governamentais e monitora possíveis mudanças de decisões que podem ser tomadas para tornar as finanças públicas mais eficientes: identificar desde a compra de um remédio por um valor acima do preço da médica da região até recursos que estão parados em determinada pasta e poderiam ser alocados.

“Há milhões de dados públicos que podem ajudar as gestões a tomar melhores decisões”, resume o fundador da startup.
A Gove está hoje em 33 municípios das cinco regiões do país. Os contratos com os governos, no geral, são feitos com entes privados que doam os serviços para as prefeituras, o que significa que as gestões não têm gastos ao adquirir o serviço.

“Finanças municipais são um problema crônico no Brasil como um todo, que se repete nos 5.500 municípios do país”, completa o sócio Rodolfo Fiori. “Se a gente melhora a eficiência da tomada de decisão, fazemos com que sobrem mais recursos para saúde e educação.”

Como esperado, essas startups ainda enfrentam desafios burocráticos, como nas formas de compra de serviços –questão importante quando se trata de dinheiro público. As críticas vão, no entanto, no sentido de que a lei não traz incentivos para a contratação de inovação.

“Os mecanismos existentes hoje geram um pouco de insegurança no setor público municipal, o que dificulta levar inovação para pequenos municípios”, critica Fiori, da Gove.

O Marco Legal das Startups, que pode ser votado nesta semana no Senado, prevê facilitar negociações entre startups e governos, embora empreendedores considerem o texto atual aquém do que foi debatido com entidades do setor no processo de construção do documento.

Outra govtech, o Portal de Compras Públicas surgiu em 2016 justamente com o intuito de auxiliar governos em processos de compras, oferecendo um sistema para ser usado em licitações eletrônicas.

“Quando a legislação de compra eletrônica nasceu, lá em 2002, já conhecíamos a realidade municipal e sabíamos que não haveria capacidade tecnológica. Quando falamos de Brasil, estamos falando desde municípios com menos de 5.000 habitantes até São Paulo e seus 12 milhões de cidadãos. Não são dois brasis, são 500. O que parece fácil para uma grande capital é ficção científica para o município pequeno”, diz o cofundador do portal, Leonardo Ladeira.

O Portal de Compras Públicas permite que pequenos produtores locais tenham vantagem sobre grandes, ao baratear o custo de participação no processo e dar preferências. Também puxa preços para baixo, ao aumentar a concorrência.

“Compra pública movimenta 14% do PIB (Produto Interno Bruto), estamos falando de algo perto de R$ 950 bilhões por ano, que é concentrado na União, mas tem uma fatia muito expressiva sendo negociada em estados e municípios. E, quando é feito da forma eletrônica, é transparente, muito fácil de ser auditado pela sociedade.”

Governos e fornecedores podem usar a plataforma gratuitamente, mas os últimos podem pagar uma assinatura para terem mas serviços, como serem notificados de processos licitatórios abertos, e que possam se encaixar –no fim, não há nenhum gasto para o ente público.

Hoje, são mais de 1.400 prefeituras utilizando o sistema, em 25 estados, e mais de 100 mil fornecedores cadastrados. Em 2020, a empresa recebeu um aporte de R$ 2,5 milhões do Fundo Venture Brasil Central, gerido pela Cedro Capital.

Uma startup que fez a transição do setor privado para o público foi a Dados Legais. A iniciativa surgiu em 2019 como forma de ajudar empresas a ficar em conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados).

“Começamos na iniciativa privada e vimos que essa era também uma dor do setor público, então voltamos nossa atuação para auxiliar Câmaras e prefeituras a cumprir os requisitos”, afirma a presidente-executiva da empresa, Luiza Leite.

A plataforma automatiza a busca de levantamento de dados que, pela lei, podem ser solicitados pelos cidadãos.
“Muitos entes públicos não conseguem ter acesso a plataformas tecnológicas por serem muito custosas. Estamos desenvolvendo um produto que pode reduzir o custo dessa operação, além de garantir ao cidadão a oportunidade de exercer seu direito de forma mais simples, fácil e segura.”

Outro desafio encontrado pelas empresas do ramo está na captação de recursos. Muitos gestores de venture capital (capital de risco) ainda têm receio do setor.

Govtechs que vendem para a esfera pública têm a particularidade de não trazer retornos tão rapidamente quanto se espera de startups, além de estarem navegando por um ecossistema mais instável e sujeito a mudanças a cada quatro anos.

Também há a resistência dos próprios gestores públicos, muitos dos quais ainda pouco afeitos à pauta de tecnologia.

“Há uma assimetria de informação muito grande, de empreendedores que não estão familiarizados com o setor público e gestores que não têm conhecimento de como as tecnologias vão levar à construção do governo do futuro”, afirma Piccolotto.

“Por isso, precisamos voltar a falar de governança e compliance. As relações entre público e privado precisam ser restabelecidas no Brasil de forma adequada e transparente, sem o enfoque tão negativo que têm hoje, e que essas parcerias possam reverter em produtos importantes para o desenvolvimento do Brasil.”

Fonte: Folha de São Paulo

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