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A tecnologia blockchain surgiu no setor financeiro, viabilizando criptomoedas como o bitcoin. Embora ainda esteja em fase de teste, não é possível exagerar o seu potencial de disrupção no setor público. Projetos piloto e provas de conceito estão se multiplicando em inúmeras startups de tecnologia em uma grande variedade de áreas, tais como gestão de identidade, registro de propriedades e tráfico de diamantes.
Em vista da badalação, as autoridades devem considerar com um espírito mais crítico, antes de sucumbir ao fascínio, o que é possível e o que não é possível fazer, sobretudo em relação às expectativas de que o blockchain aumentará a integridade e eliminará a corrupção no governo. Como as autoridades utilizarão o blockchain para reforçar a confiança e transparência no governo é uma questão crítica que terá prioridade na agenda política de muitos países, sobretudo na América Latina.
A cúpula regional do World Economic Forum em março de 2018 examinará o aproveitamento do potencial de disrupções digitais para restaurar a confiança e promover a integridade no governo. As evidências iniciais sugerem que a tecnologia deve ser desenvolvida sobre a fundação de instituições mais sólidas.
Teste de soluções de integridade
Fundamentalmente, o problema que a tecnologia blockchain procura resolver é a segurança e integridade dos dados em um mundo cada vez mais preocupado com a privacidade dos dados e a diminuição da confiança no governo. É uma tecnologia que permite registrar ativos, transferir valores e monitorar operações de forma descentralizada, assegurando a transparência, integridade e rastreabilidade dos dados sem a necessidade de uma autoridade central para autenticar as informações. É essencialmente um sistema criado para criptografar informações e um banco de dados compartilhado. Baseia-se em um mecanismo de consenso entre parceiros de confiança para certificar informações e validar operações.
O blockchain dificulta a corrupção, pois é uma tecnologia de controle distribuído que pode certificar registros e operações – ou “blocos” – sem um banco de dados central e sem a possibilidade de remoção, alteração ou adulteração. Atribui um nível sem precedentes de integridade, segurança e confiabilidade às informações que processa, reduzindo os riscos associados à utilização de um ponto único de falha. Elimina a necessidade de intermediários, reduz a burocracia e diminui o risco de arbitrariedade. Também permite monitorar e rastrear operações. A trilha imutável de operações pode ser utilizada pelos órgãos de segurança pública e auditores do governo.
A tecnologia blockchain tem muitas aplicações, mas as mais promissoras para assegurar a transparência e integridade dos dados estão relacionadas com o registro de ativos e o monitoramento de operações.
Um primeiro grupo de soluções baseadas em blockchain refere-se ao valor de ativos, em particular o registro de propriedades e a escrituração de terras. O desenvolvimento de sistemas de registro imutável baseados em blockchain pode prevenir fraude e incentivar os bancos a conceder empréstimos com terras como garantia.
A Suécia está testando um registro de terras baseado em blockchain, que torna operações imobiliárias visíveis para todas as partes interessadas. A Geórgia está realizando avanços no registro de escrituras de terras utilizando a tecnologia blockchain, e a Ucrânia está estudando a possibilidade de aplicá-la na reforma do seu processo de registro de terras, que é extremamente burocrático. Contudo, Honduras tentou, sem sucesso, criar um banco de dados descentralizado utilizando o blockchain.
A tecnologia blockchain também está sendo testada para criar registros de empresas que não podem ser adulterados e que ajudariam a identificar os seus reais proprietários beneficiários e prevenir a lavagem de dinheiro. Essa aplicação facilitaria o cumprimento dos regulamentos de Conheça Seu Cliente e permitiria uma supervisão mais eficaz de reguladores financeiros, órgãos de segurança pública e administrações tributárias.
Um segundo grupo de experimentos enfoca o monitoramento de operações, sobretudo operações de alto risco do governo, como contratos públicos, transferências monetárias e fluxos de assistência. O objetivo dessas aplicações é mitigar o risco de fraude e vazamento no fluxo de recursos. A OCDE estima que a corrupção acrescenta até 10% ao custo total de fazer negócios mundialmente e até 25% aos custos de contratos nos países em desenvolvimento.
O e-procurement está aumentando a digitalização e transparência da contratação pública, e as soluções de integridade baseadas em blockchain poderiam acrescentar outra camada de segurança ao processo bloqueando informações críticas ao longo da cadeia de compra. Essas informações poderiam ser monitoradas, rastreadas e auditadas com mais facilidade. O México recentemente começou a testar uma aplicação para contratação pública baseada em blockchain. “Contratos inteligentes” também poderiam eliminar a arbitrariedade no processo de contratação. Permitiriam a programação da troca automática de ativos em um blockchain inalterável que se executaria independentemente de acordo com as condições programadas.
Um raio de esperança
Os primeiros experimentos indicam que as condições iniciais são importantes. A Geórgia está incluindo a tecnologia blockchain em um sistema de registro de terras relativamente eficiente, acrescentando uma camada adicional de segurança. Além disso, para que o blockchain funcione, há vários pré-requisitos a serem atendidos. Os dados existentes devem ser precisos, os registros devem estar digitalizados, e a identidade digital deve ser confiável. Essa não é a situação típica em muitos países em desenvolvimento, vários dos quais precisam primeiro preparar os elementos básicos.
A governança de blockchains ainda não está definida. Sendo um sistema descentralizado, pressupõe-se que blockchains governem-se a si próprios. Michael Pisa e Matt Juden alertam que os governos que optarem por um blockchain público, isento de permissões, teriam de aceitar “que não teriam praticamente nenhum controle sobre como o sistema é governado”. É por isso que Don Tapscott prevê que, no setor público, as plataformas de blockchain incluirão permissões, na sua maioria, e serão privadas, supervisionadas por um grupo de validadores de confiança ou “gatekeepers” e distribuídas de forma controlada, com um único órgão governamental verificando a entrada de dados e resolvendo parcialmente o problema do “ponto de entrada”.
Outro desafio está relacionado com a confiabilidade dos registros, sobretudo as entradas iniciais. Pusa e Juden dizem: “Como qualquer outro banco de dados, digamos, um blockchain é um sistema do tipo ‘se entra lixo, sai lixo’. Isso significa que a confiabilidade dos registros armazenados depende totalmente de como foram originados.” Por esse motivo, será necessário que um gatekeeper garanta a veracidade das informações introduzidas em um blockchain.
Os governos têm de resolver as deficiências das instituições subjacentes e dos sistemas antigos. A tecnologia blockchain, em si, não substituirá o governo nem resolverá todos os seus problemas. Funcionará melhor quando os sistemas existentes já estiverem digitalizados e robustos. Contudo, paradoxalmente, os países que têm mais a ganhar com soluções baseadas em blockchain para consertar sistemas antigos avariados também terão as maiores dificuldades para utiliza-los com eficácia.
Inspirando confiança
O potencial da tecnologia blockchain é enorme, e o seu potencial de eliminar a corrupção é grande demais para ignorar em um mundo traumatizado por escândalos de corrupção. Se puder resolver desafios críticos, como o ponto de entrada, a tecnologia blockchain poderá ajudar a aumentar a integridade e confiança no governo. A despeito de todas as incertezas e riscos, poderia acrescentar uma camada de segurança a registros e operações que estejam mais expostos a elevados riscos de corrupção. O momento de experimentar é agora.
Mas a tecnologia blockchain não é uma panaceia. Ainda está na sua infância, e os modelos de governança ainda estão sendo desenvolvidos. Serão precisos vários anos para avançar dos programas piloto para aplicações mais amplas no governo como um todo. Também devemos ter clareza sobre os seus requisitos, o que pode e não pode fazer e o valor que pode agregar. A tecnologia blockchain não é uma “varinha mágica”: não devemos esperar que elimine a necessidade de instituições mais sólidas.
*Carlos Santiso é líder da Divisão de Inovação em Serviços para os Cidadãos do Banco Interamericano de Desenvolvimento. É co-presidente do Grupo de Trabalho de Tecnologia para a Integridade da Iniciativa de Parceria Anti-Corrupção PACI do World Economic Forum e atua no comitê consultivo da iniciativa blockchan.ge do Laboratório de Governança da New York University.
Fonte: ComputerWorld
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